Carta de Lyon

Das Minas Gerais para Lyon e de Lyon para todos que gostam de compartilhar experiências. Navegar é preciso, viver não é preciso! Vinhos, gastronomia, culinária, costumes, hábitos, paisagens. Liberté, Égalité. Fraternité. Libertas quae sera tamen. Uma mistura a rechear estas Cartas de Lyon.

27.11.04

A festa do Beaujolais nouveau - 17/11/04

Sempre na terceira quinta-feira do mês de novembro da cada ano, na cidade de Beaujeu, é feito o lançamento mundial desse famoso vinho. Para os apreciadores, sabemos que não é lá grandes coisas, pelo contrário, é até bem sem-graça. Mas como estava aqui, bem pertinho – a cidade fica a menos de 1 hora de Lyon – aproveitando a excursão promovida pela Aliança Francesa, não podia deixar de ir. Se não gosto muito do vinho, gosto muito de festa.
Saímos à noite, porque o lançamento é feito exatamente à meia-noite da virada de quarta para quinta-feira. Fui junto com mais 4 colegas e então, a festa prometia!
Chegamos a uma pequena, mas charmosa cidade, que de tão pequena, impressionou-me ser capaz de um evento que tem repercussão mundial e que é o centro de uma região produtora de vinhos que os manda para os mais variados lugares do mundo. O que um bom marketing não é capaz de fazer, não é?
O frio era de congelar, mas todos tínhamos sido avisados para irmos com roupas bem apropriadas. A festa começa com uma linda caminhada iluminada com tochas, que conduzem uma grande multidão para uma linda praça, próxima a uma igreja medieval, onde estava armado um grande palco. Muitas luzes coloridas iluminavam o palco e os monumentos próximos. Pequenas bandas tocavam música e o locutor ia criando a expectativa, até que, meia-noite, após contagem regressiva o vinho começa a jorrar de um grande globo terrestre suspenso e logo em seguida um lindo espetáculo de fogos ilumina o céu e as montanhas próximas.
Daí pra frente, é degustar... Logo descobri uma barraca que ao invés de Beaujolais nouveau servia Beaujolais Villages, um tanto quanto melhor e daquele momento pra frente só bebemos dele. Atenção amigos brasileiros, o preço cotado do Beaujolais nouveau aqui é de 3.20 euros. Lembrem-se disso quando virem o preço abusivo por aí.
Depois nos dirigimos para o grande baile. Uma enorme tenda abrigava centenas de pessoas e vários conjuntos se revezavam. Nunca vi tanta fartura de belos homens reunida. Muito bom! Mas cá pra nós, baile francês lembra um pouco baile de terceira idade, com aquelas músicas, meio valsinhas do interior. Agradável e interessante no começo, mas depois dá uma saudade danada de um bom forró e um bom samba.
Mas aproveitamos bem até quase cinco horas da manhã. Mais um belo passeio, mais uma boa farra. No dia seguinte foi um custo dar conta de aula de duas da tarde às oito da noite. Mas tudo bem, recuperei depois.

24.11.04

A Côte D'Azur

De 12/11 à 15/11

Minha viagem começa pela experiência de andar de TGV pela primeira vez. Claro que fiquei tensa, e o medo de perder o trem? Mas como boa mineira, cheguei cedo, me informei de tudo, conferi várias vezes o bilhete, perguntei a mesma coisa outras tantas. Enfim, estava na plataforma certa e entrei no vagão correto, sem nenhum imprevisto.
O trem, uma beleza, conforto total. Poltronas acolchoadas, espaçosas, de dar inveja aos nossos ônibus e aos aviões.
Quando ele começou a andar, meu coração acelerou junto. Meu Deus! O olhar tem que ser posto ao longe, pra conseguir se ver algo. Quando ele cruza com outro TGV, além do susto do barulho, e uma forte pressão no ouvido, o que se vê, por segundos, é apenas um massa cinzenta, disforme, passando ao seu lado. Mas, com o tempo, fui apreciando a paisagem. As cores do outono são mesmo maravilhosas! Todas as tonalidades do amarelo, laranja, vermelho, verde, tudo em um belo contraste com o céu azul.
Esse país tem mesmo coisas lindas, pois de repente, do meio do nada, aparece uma torre medieval, um castelo. Incrível.
Passei por Avignon e de longe vi construções medievais me deixando o desejo de programar uma ida especial até lá. Depois Marseille, já com o mar deixando o seu contraste também azul. Está aí, pelo que vi, outra cidade que quero conhecer. Fez-me lembrar do que costumamos associar às cidades italianas; casas muito próximas, muitas e muitas roupas dependuradas, secando nas janelas.
Passei por Toulon, e aí o trem já anda um bom trecho a beira mar em um contorno cheio de penhascos.
Finalmente cheguei a St. Raphael. Lá estava o meu querido casal francês (pra quem não sabe foi o que me hospedou quando estive em Paris) , carinhosamente me esperando.
É uma linda cidade, de construções clássicas, muitas delas suntuosas como o Cassino e os hotéis. Claramente se vê que se está em um lugar de ricos. A urbanização da praia, os jardins, as praças, os restaurantes, tudo de encantar a alma!
A cidade é cheia de colinas e a casa deles fica em uma delas, não de frente para o mar, mas de onde se tem uma vista enorme das grandes montanhas da região. Ah! Meu Belo Horizonte!!! Que bom ver montanhas e matar um pouquinho da saudade!
A casa, confortabilíssima, eu alojada na suíte da casa. Suíte sem privada, é claro, porque o francês separa seu digníssimo recinto para as meditações intestinais, do lugar de banho.
Uma bela e aquecedora lareira acesa todo o tempo. As refeições me rememorando Paris, quando me hospedei com eles; aquela maravilha de sabores, com todo o ritual. Aperitivos (geralmente belos vinhos brancos, geralmente moscato, água Perrier e suco de tomate) acompanhados de alguns embutidos e a azeitona mais maravilhosa que comi. As regiões de Provence e Cote D’Azur são grandes produtores de azeitonas e azeites deliciosos. Depois dos aperitivos, passávamos à mesa. Aí, se abre o vinho tinto. Começamos pelas entradas, depois o prato principal com a carne e algum acompanhamento, depois os queijos (sempre variados para que eu pudesse experimentá-los) e por fim a sobremesa e as frutas (o nome da mixirica aqui é super simpático: clementine.). Ai, aí aí, bom demais! Em relação às comidas vale registrar algumas delicadezas. Na noite do primeiro dia, uma bela carne (aqui os cortes são diferentes e não consigo identificar) toda amarrada em ervas, preparada caprichosa e demoradamente em uma grelha na lareira. Outro cuidado, a sobremesa chamada Tropezienne (originária de St. Tropez, por isso o nome). Tem uma parte de bolo, recheada fartamente com um creme que me fez lembrar dos antigos sorvetes de creme de Belo Horizonte, principalmente do Sósó Sorvetes. Outra sobremesa maravilhosa: torta de maçã fervendo, com sorvete. Por fim, outra delicadeza: compraram especialmente para eu experimentar, o verdadeiro cuscus marroquino. Aí vi francês comendo em prato fundo, tudo misturado, lembrando nossos pratos e jeito de comer.
Eles, com toda paciência do mundo, me ensinaram e corrigiram meu francês muitas vezes, mas mesmo assim, conseguimos ter conversas maravilhosas, como as memórias da guerra de Monsieur Régis, bem menino, escondido no armário e as lembranças que os dois tem das conseqüências da guerra em suas famílias e em suas histórias. Essas memórias da guerra são ainda muito presentes e St. Raphael foi um dos lugares de desembarque dos americanos.
Tudo que me levaram pra conhecer foi de puro encanto. Quando me vejo conhecendo esses lugares, com a plena consciência de que eu estou ali, vendo aquelas coisas, tenho mesmo a sensação física de que minha alma cresce! Me dá uma alegria danada, e algumas vezes me emociono mesmo.
Os cantos e as pracinhas, sempre com um restaurante charmoso, tem próximo uma oliveira, e debaixo delas as mesinhas ao sol. Toda manhã, depois de passearmos a pé, sentávamos em um desses restaurantes pra tomarmos um Kir. Aí meu Deus! Não é demais! Como posso me ver em uma situação dessas e não ter a sensação de criança encantada?
A cor do Mediterrâneo é linda, mas a praia, nem tanto, porque a orla e a areia são incomparáveis com as nossas. Aprendi que o mediterrâneo não tem maré, e por isso, não tem ondas, só pequeníssimas marolas. O céu inteiramente azul, o sol a pino, mas todos de blusa pesada, o frio só nos deixava apreciar de longe.
Fomos a Agay e me encantei com os penhascos, principalmente com as Roches Roses. São realmente rosadas quando o sol bate. Para respeitar a cor das rochas, pra não fazer contraste com elas, todas as casas e telhados da região são da cor de terracota. Aprendi que o que chamamos de construções em estilo mediterrâneo, tem a ver com as formas e cores para não concorrer com as rochas. Bonito demais!!!
Fomos a Fréjus. Começa do outro lado da ponte de St. Raphael, mas mais ao longe esconde coisas maravilhosas. Na verdade é um sítio histórico com muitas ruínas romanas, aqueduto, anfiteatros para lutas de gladiadores. Tem também toda uma parte medieval, com igreja e monastério do séc II. Quando entramos, a igreja estava quase na penumbra e uma pessoa tocava um enorme órgão de tubos. Imaginem só!
Na cidade, as vielas tortuosas, com construções coloridas e de paredes tortas, são deliciosas pra se caminhar.
Fomos também à St. Tropez e passamos por várias e charmosas pequenas cidades. Mas St. Tropez é de encher os olhos. Começa pelo seu porto, com aqueles iates tão grandes e suntuosos que a gente nem acredita que alguém possa ser dono daquilo. Do alto do muro do porto, tive a mais bela vista, até o momento, dessa viagem: meus olhos se perdiam no mar, do outro lado, bem ao longe o contorno de St. Raphael, muitas e muitas montanhas de vegetação fechada, fazendo contraste de verde e, bem distante ao fundo, imponente, os Alpes e seu telhado branco de neve!!! Quando vi pela primeira vez, me surpreendi como uma menina e me emocionei.
Depois disso, um passeio a pé pelas vielas de St. Tropez. Linda! Cheia de encantos e ar de mistério. Algumas construções são medievais, outras renascentistas e é, de todos os conjuntos, o mais lindo! Há qualquer coisa de Búzios nessas praias.
Vocês podem imaginar como voltei... estava aquecida pelas belezas que vi, mas principalmente pelo acolhimento carinhoso de uma família tão generosa comigo.
Meu TGV, na volta, a mais exemplar tecnologia francesa, deu pane na estação de Marseille, o que fez todo mundo ter que descer e gelar de frio na plataforma e nos atrasar 45 minutos. Mas, como o serviço é francês, por conta desse atraso, ganhei um desconto do mesmo preço da passagem, para qualquer lugar que quiser ir. Bom demais do conta!!!

10.11.04

Meu encontro com Baco

07/11/2004


Vou começar meu encontro com Baco pelos passeios da semana passada. Aconteceu, aqui em Lyon, em um local bem próximo de onde estou – Halle Tony Garnier – o salão dos produtores independentes de vinho de toda a França. Trata-se de um grande local de exposição, onde estavam reunidos mais de 500 produtores das mais variadas regiões. Pelo módico preço de 3 euros, ganhava-se a taça de degustação e o direito de degustar o que bem quisesse ou conseguisse. Vocês podem imaginar como gostei! Tanto, que fui por dois dias seguidos. Provei os rose da Provence, os brancos da Alsace, as legítimas e maravilhosas champagnes de Champagne, os fantásticos Sauternes e seu maravilhoso sabor levemente defumado, e os excelentes, já tradicionais, Bourdeaux e Bourgogne. Me deliciei! Essa feira é uma completa perdição! Comprei alguns, já deixando os especiais guardados para aqueles que vem me visitar, e lembrei-me muito dos meus amigos da CONVIVA (Confraria dos Amigos do Vinho do Vale do Arrudas). Ah, a gente junto aqui!
Depois, nesse final de semana, uma outra maravilha; a exposição “Le vin: Nectar des Dieux, Genie des Hommes”, no museu Gallo-Romano de Fourviere. Realmente me emocionei quando entrei na exposição, encantada com a sua beleza e, de novo, com a lembrança dos amigos. A exposição reúne objetos de vários museus, contando a história do vinho: sua produção, seus utensílios, seus mitos, suas cerimônias, os ritos e sacrifícios que o envolviam. Coisas de 2000 anos antes de Cristo, suas histórias pelo Egito, Grécia, Roma, até chegar à Gália (região, é claro, de Lyon).
Lá estava Dionísio, lá estava Baco e seu cortejo com as Bacantes, ensinando sobre o prazer, a alegria, sobre os sentidos, e também sobre a temperança e a medida. Conheci as crateras, locais onde se misturavam a água e o vinho. Uma linda, enorme, em bronze, que comportava até 1.200 litros de vinho, enfeitada com altos relevos do cortejo das bacantes, e tendo como alça, duas figuras femininas, em posição nada conservadora, simbolizando a fertilidade, e a dádiva da terra.
Conheci os locais onde, de modo ritual, o que seria o primeiro gole, era lançado a terra, em sinal de fertilização, mas também como uma forma de umedecer os subterrâneos e ajudar a ascensão dos mortos e dos deuses ao Olimpo. (origem provável do nosso “gole pro santo”).
Aprendi que Symposium, eram grandes banquetes, onde as pessoas se reuniam para celebrar algo.
Cada objeto, mais bonito e mais significativo que o outro, contando a história do sentido transcendente do vinho, que em sua associação sagrada ao sangue, era usado em rituais de sacrifício, representando ao mesmo tempo vida e morte. Atravessa os tempos, e chega até nós no sacramento cristão da eucaristia.
O clima da exposição é fantástico! Dezenas de âmphoras, algumas datadas do séc. 3 antes de Cristo, já com a marca do produtor e do comprador.
Claro que cheguei em casa, estou escrevendo e tomando uma taça de um ótimo Bourdeaux.
Salut!
Um brinde aos gostos e à vida!